sexta-feira, 10 de setembro de 2010

GIRASSÓIS NO QUINTAL...












GIRASSÓIS DE VAN GOGH

Apagaram-se as últimas estrelas do firmamento
E a noite em questão - matéria inerte condensada
Num amálgama de medo e pavor
É a negra pantera a velar teu sono
A pesar sobre teu corpo
Sedenta de um desejo cáustico
Que lhe dissolve as fibras
De um sonho distante

Adormeces, enfim
Embora retesado pelo frio
O corpo permanece desnudo
Os dedos arroxeados
A face apática
Um filete esbranquiçado
De saliva derramada

A pantera se vai com a última corrente de ar
Frio, e lentamente se desvenda a manhã
Tão leve como uma pluma juvenil
E pela janela transpassam
E derramam-se e deitam-se sobre a cama
Os dourados raios da anunciação
E a manhã foi feita
Bela e trágica
Como um girassol de Van Gogh

FALLUJAH



FALLUJAH

persuadidos pelo silêncio
da noite escura
notas de veludo e pólvora
suspensas no ar

entrincheirados e sorridentes
avançamos
por entre os cadáveres
da antevéspera

há menos de um ano
numa noite como esta
dançávamos
ao som do violino do velho
que tocava sem cessar

avancemos
ainda que retesados e febris
nossos corpos
dentro da noite fria

ao longe o clarão de chamas
flamas ruivas e famintas
debruçando-se sobre a gare

arrastando-se pela planície
soa o chamado do trem
o último a despedir-se do continente

caminhemos
em meio aos escombros incandescidos
da estação
nossos corpos febris tocarão o fogo

ainda assim
sobreviveremos

* * *

GOIÂNIA, 19 JAN 2008

O BLUES A CERVEJA E A NOITE



O BLUES A CERVEJA E A NOITE

o blues a cerveja e a noite
aquecem o espírito das lembranças
adormecidas

uma a uma vão se levantando
e ao meu lado se perfilando
enquanto meus olhos contornam
os brancos olhos da lua

o blues a cerveja e a noite
só me levam a um pensamento:

não há solidão maior na vida
quando as lembranças de um homem
dele sentem piedade

* * *

Goiânia, 07 jun 2007


ÚLTIMO MOTIVO DA ROSA

A beleza suicida da rosa
no asfalto
É um grito de desespero
O último chamado do navio
que desancora
Lançando-se nas águas
Daquilo que é mistério e dor
e contemplação

Saber das suas rubras pétalas
É saber do sangue que escoa
Ainda morno
Pelas feridas nascidas dos embates
Vãos de cada dia

Sendo a rosa, dia-a-dia,
Menos rosa, hoje
Menos ainda rosa, amanhã
Já sabendo a flores de velório
É quando lhe sorri o mundo
Com seus brancos dentes de sabre

No asfalto, dilacerada
A beleza fátua recende
Da alma-rosa,
Transcendente
Da matéria-rosa,
Morta

* * *

Goiânia, 03 de maio de 2006

Créditos da imagem: Henrique Kugler

[http://br.olhares.com/galeriasprivadas/browse.php?user_id=185954]

DISCURSO DO TEMPO



DISCURSO DO TEMPO

Quando eu for bastante velho
a ponto de me ignorarem todos os espelhos
do mundo
e quando se tornar o sol apenas uma réstia
florescente
que em vão tentará aquecer o vidro das retinas
serei mais jovem que o homem que fui
há cinqüenta anos
que o homem de hoje
que o rapaz de ontem

Quando muito, terei dez anos
e os dias terão o sabor dos quintais
e recenderão à terra molhada
após as chuvas estivais

E assim,
a cada dia concluído
os sentidos primários se apresentarão
tal qual os de uma criança de colo
até vir ao meu encontro a data fatal
trazendo em sua mão o bilhete final
com destino ao ventre da terra

* * *

Goiânia, 1º maio 2007.

MESTRE JONAS



MESTRE JONAS


À Zé Rodrix, in memorian


O pequeno Jonas passa as estações da vida
no interior do quarto azul
cercado de livros e miudezas de
toda ordem.

O interior do quarto é a sua
grande baleia, onde Jonas planeja
diuturnamente navegações fantásticas
pelas águas do seu oceano particular.

Jonas só não compreende a razão
de ali vez ou outra aparecerem homens
e mulheres em vestes brancas, trazendo
nas mãos comprimidos, a fim de persuadi-lo
a abandonar seu universo de infinitas
possibilidades, forçando-o a viver num
mundo rancoroso, onde pessoas sempre
buscam caminhos opostos à felicidade.

Mas o pequeno Jonas acredita na força
da grande baleia, a romper incansavelmente
as milhas marítimas, até o dia em que sairá
pela boca gigantesca do cetáceo
e que neste dia os pés descalços de Jonas
mansamente tocarão o solo
de um mundo novo.

* * *

Goiânia, 11 maio 2009.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

PROMONTÓRIO



PROMONTÓRIO

O mar sabe de si e da vida
e da noite, que audível na lua cheia
faz perpetrar seu lume em densas águas negras
despertando das trevas os corais da madrugada

O sol suspende o dia
e com ele seus objetos de cor e criaturas de som
nuvens, fragatas, uma nau
: a paisagem reinventada em si mesma

E com ímpeto febril, por sobre as rochas
uma onda, que se devolve ao mar
para que outra novamente se lance
e assim continuamente
no reiterado exercício de fúria e paciência
possam consumir o espírito das pedras

* * *

Goiânia, abril de 2007.

Noite Veloz



NOITE VELOZ

Há um grito perdido na noite.
Há um bêbado quebrando garrafas
Na esquina.
Há um orgasmo sufocado entre
Quatro paredes.
Há um despertador programado para acordar
Às cinco da manhã o jovem vendedor.
E um ataque cardíaco que faz prolongar
O sono de um velho esquizofrênico.

Há um poeta insone a destilar
Palavras ermas de sentido na
Pele alcalina do papel
A esperar que a manhã venha
Recobrar-lhe os sentidos e devolvê-lo
À trágica banalidade dos dias.

* * *

Goiânia, 06 de setembro de 2010.