domingo, 18 de dezembro de 2011

Natal


O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.


E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.


Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.


A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


Fernando Pessoa

ESPERANÇA




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


Mario Quintana

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A ceia dos invisíveis


     
É Natal! Por ocasião da data, a cidade encontra-se repleta de enfeites luminosos. Tão logo a tarde traz o arrebol, luzes intermitentes, numa profusão de cores dançantes, despontam nas ruas e avenidas, encantando os olhos de muitos e provocando vertigens em outros. De um modo estranho, a atmosfera parece mais leve e as pessoas tentam esboçar nas faces sombras de clandestina felicidade.

Pelas ruas do centro da cidade, sob o sol escaldante, homens desempregados ganham uns trocados metidos em disfarces de Papai Noel do terceiro mundo: barbas de poliéster encardidas, coturnos e roupas vermelhas de cetim barato. Corajosamente, a trupe de bons velhinhos aventura-se pelas calçadas apinhadas de pessoas que saem em busca de algum presente ou quinquilharia expostos nas prateleiras do comércio popular.

Em meio aos transeuntes e suas sacolas, figuras camufladas, diluídas na indiferença urbana, avançam pelas trincheiras da realidade. Um gari e sua vassoura, em vão, tentando conter a sujeira provocada pela multidão. No sinal fechado, a jovem garota distribui panfletos sobre um novo empreendimento imobiliário que desponta na região nobre da cidade. Sob a marquise de um prédio abandonado, um cego de pernas amputadas clama pela indulgência dos passantes. Quando o notam, algumas moedas são lançadas no fundo da lata enferrujada que mantém erguida pela calosa mão esquerda.

Chegada a tão esperada noite de Natal, é possível escutar o som vindo das casas e condomínios. Pessoas alegres distribuindo votos de paz e felicidade. As mesas enfeitadas incitam a gula das crianças que, impacientemente, correm pelos cômodos enquanto esperam a hora de avançar sobre os presentes colocados ao pé da árvore natalina. Do lado de fora, sob a garoa e contra o vento frio, um carroceiro segue, alheio ao movimento das pessoas nas portas das casas e prédios, recolhendo papelão e outros materiais recicláveis. Dentro da carroça, protegidas por uma lona amarela, mãe e filha espiam as casas enfeitadas e aquela gente sorridente, homens e mulheres abraçando uns aos outros como nunca visto. Ao revirar uma das lixeiras, o catador encontra uma boneca de cabelos loiros e vestido rosa. Tira do bolso um papel de presente – dourado com flores brancas em relevo – que havia guardado para esposa e improvisa um embrulho para o brinquedo. Entrega-o à menina que, ao abri-lo, não se contém de tanta felicidade. É o milagre do Natal!

E assim, a cada ano decorrido, as gerações vindouras, envoltas na vida tecnológica, aos poucos perdem da memória a história de um certo menino que há mais de dois mil anos nasceu numa pequena cidade palestina chamada Belém, dentro de um estábulo, em meio a alguns animais, e que recebeu o nome de Jesus. E na noite que muitos celebrarão festivamente o nascimento daquele menino, outros tantos, esquecidos nos leitos de hospitais, nos abrigos, nas ruas e nos rincões da pobreza espalhados por este país, estarão à mercê de toda indiferença humana, feito um homem de nome José, carpinteiro por profissão, a quem a vida conferiu o dom da suprema humildade e resignação.

* * *

Goiânia, 10 de dezembro de 2011

sábado, 10 de dezembro de 2011

O que é inspiração?


Revendo algumas coisas esquecidas pela memória, encontrei esse texto que publiquei em 12/04/2004. Lá se vão mais de 7 anos, mas nem parece tanto tempo assim. Incrível como o tempo nos foje ao controle... Mas sem maiores delongas, reproduzo este pequeno ensaio, que um dia intitulei O que é inspiração? - mensagem ao novo escritor. Ei-lo:

* * *

Inspiração... palavra tão misteriosa quanto mágica. Sempre fico vexado quando me perguntam coisas do tipo "como é que você imaginou escrever isso?". Certamente, se eu tivesse a resposta , seria o homem mais rico do planeta. 

Difícil dizer, mas fácil sentir. Sempre que penso no ato conceptivo da escrita, lembro das palavras de Cora Coralina em entrevista cedida à TV Cultura. Lembro de Cora, do alto dos seus 94 anos, dizendo que "a poesia está no lixo". Com essas simples palavras, até certo ponto contraditórias (poesia/lixo), Cora resumiu a ânsia que eu sentia em não saber dizer onde começa o umbigo do escrever. 

A poesia está em todos os lugares, literalmente no lixo, como certa feita escreveu João Cabral de Melo Neto no poema "O Bicho": 

Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio 
Catando comida entre os detritos. 
Quando achava alguma coisa, 
Não examinava nem cheirava: 
Engolia com voracidade. 
O bicho não era um cão, 
Não era um gato, 
Não era um rato. 
O bicho, meu Deus, era um homem. 

Rachel de Queiroz, em seu último artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, intitulado A INSPIRAÇÃO NÃO VEM PARA TODOS, bem diz que a inspiração é algo que "você sentindo vagamente que tem umas coisas para dizer ou uma história para contar. Ou, às vezes, ambas. Fica aquilo lá dentro, meio incômodo, meio inchado (na minha terra se diria como "uma dor incausada"), quando um belo dia a coisa dá para se mexer. Surgem frases já inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso confia-as à memória e depois as esquece. Dentro da enxurrada de frases e de idéias aparecem, então, as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão espírita - timidamente, imprecisamente. São uma cabeça, um silhueta, uma voz. Neste ponto, com as frases, pensamentos e criaturas (e mormente com o cenário, embora ainda não se haja falado nele), nessa altura, a história já se está arrumando. Você sabe mais ou menos o que contar". 

Explicar o que parece inexplicável... Deus existe? Pra onde vamos depois da morte? São respostas que não nos pertence. E a inspiração? Um conselho: respire fundo, se possível, debaixo de sombras benfazejas. Olhe as coisas ao redor. Mas nada de lançar olhares objetivos. Examine as minúcias da vida, esses infindáveis presentes que nos são dados diariamente e por nós tolamente ignorados. Assim, você aprenderá a apreender a essência transcendente da vida. E quando não mais aguentar de tanto que a sua cabeça pensa, você compreenderá o que é inspiração. 

domingo, 4 de dezembro de 2011

Saudade nativitana


Natividade...


Ao pé da serra
Das duras cangas
Emergiram teus homens
Desde a imemorial
Escravidão


Cada dia mais distante
Tuas lembranças correm
Ao largo
Pelas insondáveis planícies
Da minha solidão


(Glauber Ramos - Goiânia/GO - 02/12/2011)

domingo, 27 de novembro de 2011

O presente não existe...

Não é extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo - o passado, o presente e o futuro -, o mais difícil, o mais inapreensível, seja o presente? O presente é tão incompreensível como o ponto, pois, se o imaginarmos em extensão, não existe; temos que imaginar que o presente aparente viria a ser um pouco o passado e um pouco o futuro. Ou seja, sentimos a passagem do tempo. Quando me refiro à passagem do tempo, falo de uma coisa que todos nós sentimos. Se falo do presente, pelo contrário, estarei falando de uma entidade abstrata. O presente não é um dado imediato da consciência.

Sentimo-nos deslizar pelo tempo, isto é, podemos pensar que passamos do futuro para o passado, ou do passado para o futuro, mas não há um momento em que possamos dizer ao tempo: «Detém-te! És tão belo...!», como dizia Goethe. O presente não se detém. Não poderíamos imaginar um presente puro; seria nulo. O presente contém sempre uma partícula de passado e uma partícula de futuro, e parece que isso é necessário ao tempo. 

Jorge Luís Borges, in 'Ensaio: O Tempo'

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O mais belo tango de Piazzolla



Quando o músico e compositor argentino Ástor Pantaleón Piazzolla (11/03/1921 - 04/04/1992) escreveu o tango Adiós Nonino, disse que talvez estivesse rodeado por anjos, e que dificilmente faria algo melhor.

A canção foi composta em outubro de 1959, época em que Piazzolla residia em Nova Iorque. Ele a compôs em homenagem ao seu pai, Vicente Piazzola, falecido há poucos dias, a quem seu filho chamava de Nonino (avozinho em italiano).

Apesar de ser considerada um réquiem (composição em honra aos mortos), Adiós Nonino invoca uma alegre melancolia, simbolizando que a saudade daqueles que se foram não necessariamente precisa vir de mãos dadas com a tristeza.


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

SABIÁ


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá 

(Tom Jobim / Chico Buarque)



sábado, 27 de agosto de 2011

Uma certa americana

crônica de Rubem Braga

Muito me inibia o cortante nome de Hélice, minha ternura do Natal de 1944 durante a guerra, na Itália.

Hélice era como ela pronunciava e queria que eu pronunciasse o seu nome de Alice. Como era enfermeira e tinha divisas de tenente eu às vezes a chamava de lieutenant, o que é muito normal na vida militar, mas impossível em momentos de maior aconchego.

Falei no Natal de 1944; foi para mim um Natal especialmente triste. É verdade que recebi notícia de que o 48th Evacuation Hospital tinha avançado para perto de nosso acantonamento. A notícia me deixou sonhador; vejam o que é um homem que ama: eu repetia com delícia: "48th Evacuation Hospital"...
   
"Evacuation" é um nome bem pouco lírico para alguém de língua portuguesa, e nem "48th" nem "Hospital" parecem muito poéticos; mas era o hospital em que trabalhava Alice, e isso me alegrava. A alegria aumentou quando um correspondente de guerra americano, acho que o Bagley, me avisou de que haveria uma festa de Natal no 48, e eu estava convidado.
  
Era inverno duro, a guerra estava paralisada nas trincheiras e foxholes, caía neve aos montes. Cheguei da frente, tomei banho, fiz a barba, limpei as botas, meti o capote, subi em um jipe, lá fui eu. No bolso do capote, por que não confessar, ia uma garrafinha de um horrível conhaque de contrabando que eu arranjara em Pistóia. A festa era em uma grande barraca de lona armada um pouco distante das outras barracas que serviam de enfermarias. Naquela escuridão branca e fria da noite de neve, era um lugar quente, iluminado, com música, onde Alice me esperava...
  
Não, não me esperava. Teve um "oh" de surpresa quando  me viu; como abri os braços veio a mim abrindo também seus belos braços, citando meu nome, e dizendo votos de Feliz Natal; como, porém, me demorei um pouco no abraço e lhe beijava a face e o lóbulo da orelha esquerda com certa ânsia, murmurou alguma coisa e se afastou com um ar de mistério, me chamando de darling, mas me empurrando suavemente.

Havia coisa. A coisa era um coronel cirurgião louro e calvo que logo depois saía da barraca. Alice saiu atrás dele, e eu atrás dela. O homem estava sentado em um caixote de munição vazio, no escuro, os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos na cara. Não me viu; fiquei atrás dele enquanto Alice insistia para que ele fosse para dentro, ali estava terrivelmente frio, a neve caía em sua careca - don't be silly, darling, repetia ela docemente; ele murmurou coisas que eu não entendia, ela insistia para que ele entrasse, please...

Enfim, havia um lieutenant-coronel no Natal de minha lieufienant. A certa altura ele foi chamado a uma enfermaria, para alguma providência urgente, e eu quis raptar Alice, mas para onde, naquele descampado de neve, sem condução? Nem ela queria ir, dizia que não podia deixar a festa; tivemos um clinch amoroso (o que chamamos pega em português) atrás de uma barraca de material, mas emergiram da escuridão dois feridos de guerra com seus roupões bordeaux deixando entrever ataduras; e Alice, que estava fraquejando, repeliu-me para reconduzir os feridos a seus leitos.

O 48th Evacuation Hospital mudou de pouso novamente e só voltei ter notícias dela em abril do ano seguinte, no fim da guerra: Alice casara-se com o doutor tenente-coronel, por sinal um dos mais conhecidos cirurgiões de Nova York, e, através de um capitão brasileiro que me conhecia, me mandara um bilhete circunspectamente carinhoso participando as núpcias e me desejava as felicidades que eu merecia.
  
Não merecia, com certeza; não as tive. Também, para dizer a verdade, não cheguei a ficar infeliz; guerra é guerra: apenas guardei uma lembrança um pouco amarga daquele Natal distante. Santo Deus, mais de 20 anos! Feliz Natal onde estiveres, Hélice ingrata

Setembro, 1957

sábado, 23 de julho de 2011

Hey, anos 80!



Hey! Anos 80!
Charrete que perdeu o condutor
Hey! Anos 80!
Melancolia e promessas de amor
Melancolia e promessas de amor...

(Anos 80 - Raul Seixas) 




Não sei qual é a mágica que envolve essa década. Talvez porque seja aquela em que as portas foram fechadas para a ditadura, dando lugar aos gritos de democracia e liberdade. As vozes silentes finalmente puderam expressar suas opiniões. A pátria que sonhava com a "volta do irmão do Henfil" finalmente assistiu de braços abertos o regresso dos seus filhos exilados. 

Uma nova juventude surgiu, e com ela a sensação de que jamais seríamos tolerantes com qualquer forma de repressão à liberdade de expressão. Muita coisa mudou para melhor, mas outras nem tanto. Os corruptos continuam no poder, conduzindo este país por caminhos obscuros. O inimigo já não é mais o "grande monstro verde do mal". Ele pode ser seu vizinho, seu irmão, pode estar dividindo a mesa com você neste exato momento. Sequer reconhecemos a nós próprios. Como escreveu certa vez o poeta francês Jacques Rigout, "Não esqueça que não posso ver a mim mesmo; meu papel limita-se a ser aquele que olha no espelho".

 Léo Jaime - Nada mudou

Lulu Santos - Um certo alguém

Metrô - Tudo pode mudar

Plebe Rude - Até quando esperar

Legião Urbana - Ainda é cedo

Blitz - A dois passos do paraíso

Um salve para o canal do Calulinho no Youtube! Só raridades...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Brasília nos versos de Nicolas Behr





ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama
nicolas behr










Nicolas Behr, forma abreviada que o poeta adotou para o seu nome solene: Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr. Nascido em Cuiabá-MT no ano de 1958, desde 1974 reside na capital federal.

Sua obra situa-se dentro da chamada "geração mimeógrafo", movimento pós-tropicalista que buscava meios alternativos para a difusão de novas ideias, em contraponto aos meios editoriais tradicionais – por isso a utilização do mimeógrafo, considerada uma tecnologia de impressão mais acessível.

Mas a geração mimeógrafo representava também um novo ideal de produção cultural. O próprio Nicolas Behr assim definiu: "a geração mimeógrafo surgiu com os 'não alinhados', só escrever não basta. Escrever é a ponta do iceberg, 'um poeta não se faz com versos', dizia Torquato Neto". Adiante, continua: "Geração mimeógrafo é antes de mais nada, uma atitude. Fazemos parte da geração do atalho, vamos pelo desvio e burlamos todo o esquema editorial do livro".

O grande diferencial de Nicolas Behr em relação aos demais poetas dessa geração é fato dele não pertencer ao ciclo de escritores cariocas que deram início ao movimento. Mais ainda, ele é o principal nome da geração mimeógrafo fora do Rio de Janeiro, e também o único que teve problemas reais com a ditadura, tendo sido preso pelo DOPS em agosto de 1978.

Por outro lado, pode-se dizer que sua poesia está impregnada pela geografia de Brasília e do planalto central em todos os sentidos: desde a arquitetura de Niemeyer até a aridez típica do cerrado, incluindo aí os acontecimentos políticos que de certo modo caracterizam negativamente a capital do país.

Para saber mais sobre o escritor, visite o seu site:

http://www.nicolasbehr.com.br/
 
VOZES DO CERRADO

brasília!!! brasília!!!
onde estás
que não me respondes?
em que bloco
em que superquadra
tu te escondes?

Do livro Entre Quadras (1979)

* * *

 
subo aos céus
pelas escadas rolantes
da rodoviária de brasília

o corpo de cristo
aqui não é pão
é pastel de carne

o sangue de cristo
não é vinho
é caldo de cana

o pdroeiro desta cidade
é S. João Bosco ou Padim Ciço?

De Saída de Emergência (1979)

* * *


eu engoli Brasília.

em paz
com a cidade
meu Fusca vai
por esses eixos,
balões e quadras,
burocraticamente,
carimbando
o asfalto

e enviando ofícios
de estima
e consideração
ao Sr. Diretor.

De Porque Construí Braxília (1993)

 
* * * 

nem tudo que é torto
é errado

veja as pernas do garrincha
e as árvores do cerrado

Do livro Beijo de Hiena (1993)

* * *
 

as águas do paranoá
não correm para o mar

viram nuvens
e ficam paradas no ar

* * *

alô? eu queria falar com
a substituta da assistente da
secretária da coordenadoria
da secretária da assessoria
da chefia da procuradoria da
defensoria da corregedoria
da ouvidoria da dona maria
que está na portaria.
ah, saiu? não volta mais hoje...
 

Ambos de Braxília Revisitada vol. I (2004)
 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

With a little help from my friends


Regravar uma música dos Beatles e imortalizar essa nova versão, superando a original? Realmente não é para qualquer um. Mas Joe Cocker conseguiu esse feito. Há mais de quatro décadas interpretando a canção With a little help from my friends, Cocker jamais deixou de cantá-la com emoção. Clássico!








***


domingo, 17 de julho de 2011

Saudade de Manuel Bandeira

Encontro canônico: Carlos Drummond, Vinicius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos

Bela homenagem do "poetinha" Vinicius de Moraes ao amigo Manuel Bandeira, a quem considerava sua principal referência na poesia nacional. 


Saudade de Manuel Bandeira

Não foste apenas um segredo
De poesia e de emoção
Foste uma estrela em meu degredo
Poeta, pai! áspero irmão.

Não me abraçaste só no peito
Puseste a mão na minha mão
Eu, pequenino – tu, eleito
Poeta! pai, áspero irmão.

Lúcido, alto e ascético amigo
De triste e claro coração
Que sonhas tanto a sós contigo
Poeta, pai, áspero irmão?

(Vinicius de Moraes)



Minha grande ternura

Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.

(Manuel Bandeira)

sábado, 16 de julho de 2011

Quintal das lembranças

Raymond Carver

O escritor americano Raymond Carver (25 de Maio de 1938 – 2 de Agosto de  1988) é, sem sombra de dúvidas, um dos principais expoentes do conto americano no século XX. Para muitos, o principal representante do gênero dentro dos EUA.

Dono de um estilo enxuto, ou como preferem os estudiosos, minimalista, Carver notabilizou-se pela economia de palavras na sua produção literária.

Com relação aos seus personagens, tinha predileção por aqueles indivíduos que por um motivo ou outro se viam à margem da sociedade: alcoólatras, desempregados, agressores, enfim, o populacho suburbano pertencente à classe média - pessoas imersas em  existências banais que a princípio seriam incapazes de despertar no leitor qualquer curiosidade sobre suas histórias de vida.

Mas é justamente desse substrato de banalidades que Carver colhe os elementos necessários à sua obra. Admirador do russo Chekhov, Raymond Carver adotou a visão conformista deste ao retratar o cotidiano, que, para ele, representava "a mais completa derrota do sonho americano".

Precocemente falecido aos 50 anos de idade, Carver não chegou a desfrutar o sucesso que sua obra adquiriu após a sua morte. Mas o legado de Carver para as gerações presente e futura reveste-se da mesma importância que os legados de nomes como Ernest Hemingway e William Faulkner representaram para a sua geração.


Mecânica popular 

             Bem cedo naquele dia o tempo começou a virar e a neve derretia e se transformava em água suja. Regatos escorriam da janelinha que batia na altura do ombro e dava para o quintal. Carros desciam pela rua encharcada e lá fora começava a escurecer. Mas estava ficando escuro também dentro de casa.
            
             Ele estava no quarto enfiando as roupas na mala quando ela se aproximou da porta.
             
             Estou feliz por você ir embora! Estou feliz por você ir embora!, disse ela. Está ouvindo?

             Ele continuou pondo suas coisas na mala.

            Filho da puta! Estou muito feliz por você ir embora! Ela começou a gritar. Você nem é capaz de olhar na minha cara, não é?
             
            Então ela reparou na foto do bebê sobre a cama e pegou-a.

            Ele olhou para ela, que esfregou os olhos e fitou-o, antes de se virar e voltar para a sala.

            Traga isso aqui, disse ele.

            Pegue suas coisas e vá embora de uma vez, disse ela.

            Ele não respondeu. Fechou a mala, vestiu o paletó, olhou em volta do quarto antes de apagar a luz. Em seguida foi para a sala.

            Ela estava na porta da cozinha pequena, segurando o bebê.

            Eu quero o bebê, disse ele.

            Está maluco?

            Não, mas eu quero o bebê. Vou mandar alguém vir depois para pegar as coisas dele.

            Você não vai tocar neste bebê, disse ela.

            O bebê tinha começado a chorar e ela removeu a manta que encobria sua cabeça.

            Ah, ah, disse ela olhando para o bebê.

            Ele avançou em direção a ela.

            Pelo amor de Deus!, disse ela. Ela deu um passo para trás e entrou na cozinha.

            Eu quero o bebê.

            Saia daqui!

            Ela se virou e tentou segurar o bebê num canto da parede, por trás do fogão.

            Mas ele avançou na direção dela. Estendeu a mão por cima do fogão e apertou o bebê com as mãos.

            Solte o bebê, disse ele.

            Vá embora, vá embora!, gritou ela.

            O bebê estava com a cara vermelha e berrava. Na briga, derrubaram um vaso de planta pendurado atrás do fogão.

            Então ele a apertou de encontro à parede, na tentativa de obrigá-la a soltar a criança. Ela continuou segurando o bebê e empurrou com todo o seu peso.

            Solte a criança, disse ele.

            Não, disse ela. Você está machucando o bebê, disse ela.

            Não estou machucando o bebê, disse ele.

            Da janela da cozinha não vinha nenhuma luz. Na penumbra, ele tentava abrir à força dos dedos dela com uma das mãos e, com a outra, segurava o bebê, que berrava, apertando a criança por baixo do braço, perto do ombro.

            Ela sentiu seus dedos sendo forçados a abrir. Sentiu o bebê sendo tirado de suas mãos.

            Não!, berrou ela na hora em que as mãos se abriram.

            Ela não podia ficar sem aquele bebê. Agarrou o outro braço do bebê. Segurou o pulso do bebê e inclinou-se para trás.

            Mas ele não queria soltar. Sentiu o bebê escorregando de suas mãos e puxou de volta com muita força.

            Dessa forma, a questão ficou resolvida.


Tradução de Rubens Figueiredo


 
Conto retirado do livro 68 contos de Raymond Carver, Editora Companhia das Letras, cuja aquisição recomendamos.