quinta-feira, 31 de março de 2011

Sizenando, a vida é triste

Rubem Braga
Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Esta frase não é minha, e desgraçadamente não consegui saber o nome de seu autor, pois acordei muito cedo, mas não o bastante cedo; quando liguei o rádio às 6:10 a aula já tinha começado; ouvi o programa até o fim, mas não fiquei sabendo o nome do professor. "La verando estas vera jardeno, plena de floroi". Nunca estudei esperanto, mas suponho que a varanda ou o verão está com muitas flores no jardim; de qualquer modo é uma boa notícia, algo de construtivo.

Confesso que a certa altura mudei de estação; sou um espírito inquieto. A estação logo à direita dava telegramas de Argel, crise na França; fui mais adiante, sintonizei um bolero; tentei ainda outra, dizia anúncios; voltei para o meu jardim florido em esperanto.

O professor estava agora respondendo cartas de ouvintes. O Sr. Sizenando Mendes Ferreira, de Iporá, Goiás, escrevera dizendo que achara suas aulas muito interessantes e queria se inscrever entre seus alunos.

Sou um homem do interior, tenho uma certa emoção do interior, às vezes penso que eu merecia ser goiano. A manhã estava escura e chuvosa em Ipanema; e me comoveu saber que naquele instante mesmo, a um mundo de remotas léguas, no interior de Goiás, havia um Sizenando, brasileiro como eu, aprendendo que o jardeno está plena de floroi - e talvez escrevendo isso em um caderno.

Não importa que neste momento haja milhões de brasileiros dormindo insensatamente, enquanto outros milhões tomam café ou banho de chuveiro ou já marchem para o trabalho, ou que minha amada Joana esteja neste minuto saindo da Sacha's e entrando no carro daquele "stompananto" de Botafogo. Eu e Sizenando cultivamos o jardim da cultura, "plena de floroi"; nós somos, de certo modo, a elite do Brasil; amanhecemos em flor.

Então o professor, talvez estimulado pela atenção do ouvinte goiano, fez uma pequena dissertação sobre a utilidade do esperanto e também sobre a vantagem de acordar cedo. Está provado que acordar mais cedo faz o dia maior. Não será uma frase muito sutil, mas é tão pura e bem-intencionada que poderá figurar no decálogo do escoteiro. No fundo deve haver alguma ligação entre o escotismo, o esperanto e acordar cedo. Eis uma falha de minha vida; nunca fui escoteiro; agora é tarde para quebrar coco na ladeira, mas talvez ainda seja tempo para aprender um pouco de esperanto; eu e Sizenando. "Tenho um amigo" - dizia o professor - "que me confessou que nunca ouvira o meu programa, pois dorme até tarde. Pois bem. Ele ontem acordou cedo e ouviu o meu programa. Disse-me que passou o dia inteiro com uma excelente disposição, achou o dia maior e mais útil, ficou realmente satisfeito."

O próprio professor estava satisfeito com a declaração de seu amigo; sentia-se isso em sua voz. Murmurei para mim mesmo que o golpe é este: todo dia acordar cedo, ouvir minha aula de esperanto e depois se houver alguma aula de ginástica pelas imediações topar também, mens sana in corpore sano, no fim do mês os amigos vão ficar espantados, como o Braga está bem! Este pensamento me reconfortou; estendi a mão para pegar um cigarro na mesinha-de-cabeceira, mas fumei com um certo remorso. No fundo o esperanto deve ser contra o tabagismo, assim como é favorável ao escotismo.

"Mi estas bruna". Isto quer dizer: eu sou moreno. Mi estas bruna, ó filhas de Jerusalém, dizia a Sulamita. A esta hora Joana deve estar no carro daquele palhaço, toda aconchegada a ele, meio tonta de uísque, vai para o apartamento dele - um imbecil que não sabe uma só palavra de esperanto! A vida é triste, Sizenando.

Rio, junho 1958. 

Retirada do livro 200 Crônicas Escolhidas – as melhores de Rubem Braga. Editora Record: 17ª ed.

Um comentário:

José disse...

Rubem Braga era um craque da caneta. Considero-o um dos grandes cronistas brasileiros. Sua característica principal, sem dúvida, era a sensibilidade, algo impressionante. Braga conseguia gerar emoção nas situações menos prováveis e produzia páginas belíssimas. Esta crônica é uma de minhas preferidas, já a li dezenas de vezes. E todas as vezes capto algo diferente, uma intenção oculta, uma associação inesperada de ideias, enfim, um texto magistral.
Pena que não se vive para sempre, mas Braga vive nos textos que produziu. Verdadeiras maravilhas.
Parabéns por divulgar sua obra, é um grande mérito.
Abraços, j afonso