quarta-feira, 6 de julho de 2011

A nenhuma chamarás Aldebarã

"Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão"

Rubem Braga

Por vezes penso que, se me fosse dada a oportunidade de escolher entre ser um grande romancista, poeta ou cronista, optaria pela última opção. Bem sei que o velho Braga escreveu alguns poemas de amor - à sua maneira. Bons versos, mas se comparados com as coisas que seu grande amigo Vinicius de Moraes escrevia, tornavam-se menores.

Tampouco aventurou-se pela literatura de "grande porte". Ao seu lado, coexistiram os maiores escritores que este país já teve: João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Clarice Lispector, Érico Veríssimo...

A crônica, portanto, deveria ser considerada uma literatura dita menor? Certa vez, ao ser solicitado pelo amigo Fernando Sabino para que desse uma descrição de si mesmo, Rubem Braga escreveu: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento". 

Se algum dia a crônica foi considerada um gênero menor, Rubem Braga tratou de reparar esse engano. Com seu lirismo, aliado à sua capacidade de lançar um olhar poético sobre os pequenos momentos da vida, a crônica em Rubem Braga adquiriu status de alta literatura.


A NENHUMA CHAMARÁS ALDEBARÃ


por Rubem Braga

Eu vinha de não sei que tristes sonhos, nefastos pesadelos. Despertei, ansiado, no meio da noite, e olhando a escura parede senti que as imagens torvas que me povoavam os olhos ainda tontos ali vagamente se moviam. Voltei-me, então, sobre o meu flanco direito; a janela estava aberta para a noite. Era uma noite sem lua, que ciciava em árvores e murmurava em águas humildes; e uma grande estrela brilhava.

Haveria outras, esparsas e pequenas, mas aquela era tão grande e cintilava com uma estranha palpitação; era tão distante, mas brilhava tão perto e tão para mim como se fosse uma lanterna que mão amiga houvesse pendurado em minha janela para me dar alento no fundo da treva. Eu vagara tanto pelo mundo que, ao despertar, não sabia em que leito, casa, país e tempo; e mesmo tinha de recompor minha idéia para lembrar se era feliz ou infeliz. Apenas senti que estava agora voltado para o norte, e do fundo de meu coração saudei a estrela com a palavra que me veio aos lábios: Aldebarã!

Lera essa palavra em velhos, cansados livros que falam de astros e mistérios do céu; mas somente agora percebia que era uma palavra mística, feita de muitas outras, querendo dizer, em antigas secretas línguas: a Nova Esperança, a Alegria Amiga, o Esquecimento das Mágoas, a Alegria da Noite.

Aldebarã, Aldebarã! - disse eu, com estranho ardor; e foi como se a sua palpitação se fizesse mais fremente e pura. Então uma voz suave me disse, e era como se a minha melancólica mãe ou, ainda mais distante, a minha irmã e madrinha me passasse a mão pelos cabelos: "Descansa, dorme em paz, Aldebarã é tua amiga; e como soubeste dizer seu nome ela é para sempre tua amiga; dorme em paz, homem da noite solitária e cruel e dos fatigados, tristes pesadelos; dorme. E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a algo que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina."

Eu disse apenas, humilde: "Prometo “. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino.

Agosto, 1953


200 Crônicas Escolhidas - As melhores de Rubem Braga. Editora Record

2 comentários:

CRSTINA disse...

SIMPLESMENTE, PERFEITO, VINDO DIRETO DA ALMA, ALEGRA, ENTRISTECE, EMOCIONA, ACALMA E ACLAMA O MELHOR DE VOCÊ. LINDO!

Anônimo disse...

'L'indo, simplesmente lindo.